RESUMO: Este artigo tem como objetivo examinar o fenômeno da judicialização do direito à saúde no Brasil. Inicialmente, será abordado o direito à saúde como um direito fundamental, intrinsecamente ligado ao direito à vida, garantido pela Constituição Federal de 1988 (CF/88). Em seguida, será discutido o processo de judicialização da saúde, analisando seu crescimento nas últimas duas décadas e suas implicações no sistema jurídico brasileiro. Por fim, será analisada a atuação do STF em relação à judicialização do direito à saúde, com a análise dos julgados dos Recursos Extraordinários mais recentes, que contribuíram para a formação da jurisprudência atual sobre o acesso a tratamentos de saúde no país.
Palavras-chave: Direito à saúde. Judicialização da saúde. Precedentes. Supremo Tribunal Federal.
ABSTRACT: This article aims to analyze the phenomenon of the judicialization of the right to health in Brazil and discuss the precedents established by the Federal Supreme Court (STF) in relation to the topic. Initially, the right to health will be debated as a fundamental part of the right to life, analyzing its guarantee supported by the 1988 Constitution (CF/88). Next, the issue of the judicialization of the right to health in the legal system and its growth in the last two decades will be addressed. Therefore, the STF’s performance in relation to the judicialization of the right to health will be analyzed, at which time the judgments of Extraordinary.
Keywords: Rigth to health. Judicialization of health. Precedents. Federal Court of Justice.
Sumário: Introdução. 1. A Evolução do Direito à Saúde no Brasil e o Crescimento da Judicialização no Setor da Saúde. 2. Uma Perspectiva sobre o Mínimo Existencial e Sua Fundamentação no Brasil. 3. Análise da Jurisprudência do STF Sobre a Saúde. Conclusão. Referências.
Introdução
A Constituição Federal de 1988, ao consagrar o direito à saúde como um direito fundamental e universal, conferiu-lhe status de prioridade para o Estado, estabelecendo a obrigatoriedade de sua promoção e proteção. O artigo 196 é claro ao afirmar que "a saúde é direito de todos e dever do Estado", sendo este último responsável por garantir o acesso à saúde por meio de ações que atendam a sua dimensão preventiva, curativa e de reabilitação. No entanto, a efetivação desse direito tem se mostrado desafiadora devido a diversos fatores, como o subfinanciamento crônico do Sistema Único de Saúde (SUS) e a sobrecarga do sistema devido ao aumento da demanda por serviços médicos e o envelhecimento da população, entre outros aspectos estruturais e econômicos (BRASIL, 1988). A criação do SUS, regulamentado pelas Leis nº 8.142/90 e 8.080/90, estabeleceu um modelo de saúde pública que busca garantir o acesso universal e integral à saúde, mas a realidade tem demonstrado que a estrutura e os recursos alocados ao SUS são insuficientes para atender a toda a população de forma adequada e equitativa, especialmente com a imposição de limitações orçamentárias decorrentes da Emenda Constitucional nº 95/2016, que impôs o teto de gastos públicos por 20 anos, afetando diretamente os investimentos em saúde e educação (SILVA, 2012; SIMÕES, 2010).
A judicialização da saúde, termo utilizado para descrever a crescente demanda por soluções judiciais para garantir o acesso aos serviços e bens de saúde, tornou-se uma estratégia recursiva diante da ineficiência do sistema público de saúde em atender todas as necessidades da população. A judicialização, como fenômeno jurídico-social, pode ser vista como uma resposta do cidadão à omissão ou insuficiência do poder público em cumprir sua obrigação constitucional de garantir a saúde, sendo utilizada principalmente em situações que envolvem o fornecimento de medicamentos, tratamentos de alto custo, internações e outros procedimentos complexos. Este fenômeno, que se intensificou ao longo das últimas duas décadas, tem desafiado o sistema judiciário, que se vê obrigado a decidir questões altamente técnicas e complexas relacionadas à saúde, mesmo quando tais demandas fogem à sua esfera de especialização (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA [CNJ], 2020).
Além disso, a judicialização da saúde trouxe à tona a questão da responsabilidade dos entes federativos, uma vez que a Constituição Federal de 1988 estabelece que a saúde é um direito que deve ser garantido de maneira descentralizada, com a cooperação entre União, Estados, Municípios e Distrito Federal. No entanto, a dispersão de responsabilidades e a falta de articulação entre os diferentes níveis de governo contribuem para a ineficiência do sistema, resultando em uma maior demanda judicial para garantir o fornecimento de medicamentos e tratamentos que, por vezes, não são disponibilizados pelo SUS. Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem se consolidado como um ator fundamental na construção de um entendimento comum sobre as questões relativas à saúde pública, sendo responsável por uniformizar a jurisprudência e fixar parâmetros claros sobre a responsabilidade dos entes federativos e a necessidade de atendimento a demandas específicas, como o fornecimento de medicamentos não registrados na Anvisa, por exemplo, ou a utilização de tratamentos experimentais. Ao julgar casos com repercussão geral, o STF tem oferecido um direcionamento jurisprudencial que visa estabelecer critérios para a adequação do sistema judicial à realidade da saúde pública, mantendo a razoabilidade nas decisões e evitando a judicialização em excesso de questões que podem ser resolvidas pela administração pública, o que contribui para uma gestão mais equilibrada dos recursos (CNJ, 2021).
Portanto, a atuação do STF na judicialização da saúde é decisiva para a definição dos limites e das possibilidades de atuação do Judiciário em questões tão sensíveis. As teses firmadas pelo STF com repercussão geral possuem grande importância para uniformizar a interpretação das normas constitucionais e infraconstitucionais, ajudando a garantir a efetividade do direito à saúde sem, no entanto, inviabilizar o funcionamento do SUS. Em temas como a responsabilidade solidária dos entes federativos, o fornecimento de medicamentos de alto custo ou não registrados e a utilização de tratamentos experimentais, o STF tem sido desafiado a decidir entre a garantia do direito individual e a preservação da viabilidade financeira e administrativa do sistema de saúde pública. Assim, o Supremo se estabelece como um guardião dos direitos fundamentais à saúde, pautando-se não só pela Constituição, mas também pelos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, que devem balizar suas decisões, sempre com o objetivo de assegurar a saúde como um direito universal e garantir a equidade no acesso aos serviços.
1.A Evolução do Direito à Saúde no Brasil e o Crescimento da Judicialização no Setor da Saúde
À medida que o direito à saúde é reconhecido como um direito social fundamental na Constituição Federal de 1988, ele assume uma natureza imperativa, que exige do Estado não apenas a formalização do direito, mas também a sua efetiva implementação. A Constituição, ao estabelecer a saúde como direito fundamental, não apenas consagra a sua importância social, mas também impõe ao Estado a responsabilidade de garantir o acesso universal e igualitário aos serviços e ações de saúde. Dessa forma, o direito à saúde é um dos pilares do Estado de bem-estar social, e sua efetivação demanda a atuação coordenada de diversas esferas do poder público — a União, os Estados e os Municípios. No entanto, o cumprimento desse dever por parte do Poder Executivo tem se mostrado, em muitos casos, insuficiente, seja por questões orçamentárias, estruturais ou de gestão. Diante dessa falha, o Judiciário passa a desempenhar um papel crucial ao ser acionado pela população para garantir que o acesso aos serviços de saúde seja efetivamente cumprido, sendo o responsável por assegurar o atendimento médico e o fornecimento de medicamentos e tratamentos pleiteados (CARLOS NETO, 2017).
O aumento do número de ações judiciais envolvendo a solicitação de tratamentos, medicamentos e até internações hospitalares tem gerado uma verdadeira crise no sistema judiciário brasileiro. Nos últimos anos, tem-se observado uma grande multiplicação de demandas judiciais sobre o direito à saúde, principalmente em razão da insuficiência de recursos financeiros e da falta de um planejamento adequado no Sistema Único de Saúde (SUS), além da escassez de medicamentos essenciais ou de alta complexidade (ANDRADE, 2012). A natureza dessa judicialização vai além de uma simples busca por tratamentos individuais, refletindo também uma crise estrutural do sistema público de saúde, em que a população se vê forçada a recorrer ao Judiciário para obter o que, teoricamente, deveria ser garantido por meio de políticas públicas adequadas. Esse cenário, por sua vez, traz à tona uma questão central: como equilibrar o direito fundamental à saúde com as limitações orçamentárias do sistema público? A resposta a essa questão passa, necessariamente, pela atuação do Supremo Tribunal Federal (STF), que tem sido chamado a fixar parâmetros e diretrizes claras para a atuação do Judiciário diante da judicialização da saúde.
O papel do STF é essencial, pois, como a corte suprema do país, ele não apenas interpreta a Constituição, mas também estabelece normas gerais que orientam os tribunais inferiores a adotarem uma linha de raciocínio mais uniforme. Isso é especialmente importante para evitar decisões contraditórias e para garantir que os direitos dos cidadãos sejam respeitados de maneira consistente em todo o território nacional. Nesse contexto, o STF tem consolidado sua jurisprudência em relação ao direito à saúde, estabelecendo teses com repercussão geral que visam uniformizar a forma como o Judiciário deve lidar com questões relacionadas à saúde pública. A criação de precedentes e a fixação de parâmetros de atuação ajudam a reduzir a incerteza jurídica e tornam mais previsível o desfecho de litígios relacionados à saúde, proporcionando um melhor planejamento tanto para os cidadãos quanto para os gestores públicos (OLIVEIRA; CAPELLARI, 2021).
Exemplos notáveis dessa atuação do STF incluem decisões como o RE 855.178/SE (tema 7938), o RE 657.718/MG (tema 5007) e o RE 566.471/RN (tema 06), que abordam questões cruciais do direito à saúde, como a responsabilidade dos entes federados no fornecimento de serviços de saúde, a obrigação do Estado de fornecer medicamentos sem registro na ANVISA, e a concessão de medicamentos de alto custo a pacientes com doenças graves. Essas decisões não apenas orientam a jurisprudência nacional, mas também criam um cenário de previsibilidade que facilita a resolução de litígios, ao mesmo tempo em que buscam conciliar o direito à saúde com a necessidade de assegurar a sustentabilidade financeira do sistema de saúde público. Nesse cenário, a atuação de entidades como a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) se torna relevante, pois a EBSERH tem desempenhado papel importante na administração de hospitais universitários, sendo uma das alternativas de gestão pública para melhorar a oferta e a qualidade dos serviços de saúde, especialmente no que tange ao atendimento especializado.
Essas decisões do STF têm um impacto direto e significativo na forma como os tribunais brasileiros lidam com as questões relacionadas à saúde, promovendo uma maior previsibilidade nas decisões e garantindo que os direitos dos cidadãos sejam protegidos de forma mais uniforme em todo o país. A criação de parâmetros claros para a análise das solicitações judiciais não apenas assegura que o direito à saúde seja efetivamente protegido, mas também contribui para um sistema judiciário mais eficiente, ao reduzir a sobrecarga de demandas e permitir uma gestão mais organizada dos recursos públicos. Ao definir essas teses, o STF tem proporcionado um equilíbrio necessário entre a garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos e a sustentabilidade do sistema de saúde pública, criando um ambiente jurídico mais seguro, estável e justo para todos os envolvidos. Dessa forma, a jurisprudência firmada pelo STF não apenas fortalece a proteção do direito à saúde, mas também garante que o acesso aos serviços de saúde seja realizado de forma eficiente, equitativa e dentro dos limites orçamentários do sistema público.
A judicialização da saúde, embora necessária para garantir o direito fundamental dos cidadãos, revela um paradoxo no qual o sistema judiciário acaba por ser sobrecarregado, enquanto o sistema de saúde pública permanece sem os recursos e a estrutura adequados para atender à demanda crescente. Esse fenômeno evidencia uma falha nas políticas públicas, que não conseguem suprir as necessidades da população, gerando um ciclo vicioso no qual a solução para a falta de atendimento no SUS depende de uma intervenção judicial. O aumento das ações judiciais sobre a saúde também coloca em evidência a disparidade entre as esferas federativas, onde municípios e estados, muitas vezes, enfrentam dificuldades financeiras para atender as determinações judiciais, o que pode agravar a crise no sistema de saúde e tornar o processo de implementação do direito à saúde ainda mais complexo.
Nesse sentido, uma das principais dificuldades do sistema de saúde brasileiro é a falta de um planejamento estratégico de longo prazo que contemple não apenas a distribuição de recursos, mas também a infraestrutura necessária para atender à demanda. O Sistema Único de Saúde (SUS), embora seja um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo, enfrenta sérias limitações, como a falta de hospitais e unidades de saúde adequadas, o déficit de profissionais capacitados e a escassez de medicamentos essenciais. Com a crescente demanda e a escassez de recursos, o próprio SUS se torna um elo frágil na garantia da universalização do direito à saúde, forçando a população a recorrer cada vez mais ao Judiciário.
Além disso, o aumento da judicialização reflete a complexidade das necessidades de saúde, especialmente no que se refere ao fornecimento de medicamentos e tratamentos de alto custo, que muitas vezes não estão disponíveis no SUS. A situação é particularmente grave para pessoas que sofrem de doenças raras ou condições graves, para as quais os tratamentos específicos são muitas vezes inacessíveis sem a intervenção do Judiciário. Embora a atuação do STF tenha proporcionado alguma previsibilidade e uniformidade nas decisões, a solução para o problema da judicialização não pode ser exclusivamente judicial. É imprescindível que o Estado, em todos os níveis, invista em políticas públicas mais eficientes, que garantam a oferta de serviços de saúde de qualidade de maneira sistemática e sustentável.
Por fim, é fundamental destacar que o direito à saúde não se restringe apenas à disponibilização de tratamentos médicos, mas também envolve o acesso à prevenção, à educação em saúde e à promoção de condições de vida saudáveis. O modelo de saúde pública brasileiro precisa ser repensado de forma mais ampla, levando em consideração a importância da prevenção de doenças e a redução de desigualdades sociais, que são causas centrais de muitas condições de saúde adversas. A judicialização, portanto, não deve ser vista apenas como uma resposta a falhas do sistema, mas também como um indicativo de que mudanças estruturais são necessárias para assegurar que o direito à saúde seja efetivamente garantido a todos os cidadãos, sem a necessidade de recorrer à justiça para garantir o que é devido.
2.Uma Perspectiva sobre o Mínimo Existencial e Sua Fundamentação no Brasil
Os direitos que formam os objetivos centrais da República Federativa do Brasil têm como foco principal a garantia do mínimo existencial. Baseado no princípio da dignidade da pessoa humana, esse conceito impõe ao Estado a responsabilidade de assegurar condições básicas de sobrevivência e bem-estar para seus cidadãos.
No Brasil, as primeiras reflexões sobre o tema foram elaboradas pelo jurista Torres (1989), em sua obra "O Mínimo Existencial e os Direitos Fundamentais". Torres (1989, p. 01) aponta que "existe um direito às condições mínimas de uma existência humana digna, que não pode ser interferido pelo Estado, sendo ainda necessário que o Estado ofereça prestações positivas", evidenciando a importância deste direito como algo essencial e inalienável para todos.
Após essa obra, outros estudiosos passaram a aprofundar o debate, como Barcellos (2011, p. 247), que, ao definir o mínimo existencial, afirma que:
"O mínimo existencial refere-se ao conjunto de condições materiais indispensáveis para uma vida humana digna; entendida essa vida não apenas no aspecto físico – a simples sobrevivência e manutenção do corpo – mas também nos aspectos espirituais e intelectuais, que são elementos essenciais para um Estado que, por um lado, se pretende democrático, promovendo a participação dos indivíduos nas decisões públicas, e, por outro, liberal, permitindo a cada um buscar seu próprio desenvolvimento."
Para a autora, o mínimo existencial constitui o núcleo essencial da dignidade humana, que vai além da subsistência fisiológica, englobando também a liberdade democrática e a participação política, ressaltando sua dimensão sociopolítica, fisiológica e psicológica.
No mesmo sentido, Sarlet e Figueiredo (2008, p. 07) argumentam que:
A ideia de mínimo existencial "não deve ser confundida com o que se tem chamado de mínimo vital ou mínimo de sobrevivência", pois o último está relacionado com a garantia da vida humana, "sem, no entanto, envolver as condições necessárias para uma sobrevivência física em condições dignas, ou seja, uma vida com qualidade" (Grifo dos autores).
Dessa forma, o conceito de mínimo existencial engloba a obrigação do Estado de assegurar direitos essenciais, como saúde, educação, lazer, moradia e seguridade social, especialmente para as camadas mais vulneráveis da população, garantindo-lhes as condições mínimas para uma vida digna.
Cabe ao Estado agir de maneira tanto positiva quanto negativa. O direito ao mínimo existencial deve ser protegido contra qualquer tipo de intervenção indevida do Estado, mas, ao mesmo tempo, exige que o governo adote medidas concretas para assegurar a implementação dessas condições básicas de vida digna para todos.
O mínimo existencial deve ser garantido de maneira positiva por meio de ações e políticas públicas do Estado. Seu caráter positivo implica que ele seja plenamente exigível, configurando um direito subjetivo com uma força imperativa integral. A violação desse mínimo, ou seja, a falta de garantia dos elementos essenciais à dignidade humana, configura um desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.
É importante destacar que a implementação dos direitos fundamentais prestacionais depende de um apoio específico, que é assegurado através de políticas públicas. A partir da análise da Constituição, percebe-se que a eficácia desses direitos se dá de forma progressiva. Barcellos (2011) esclarece que, embora a Constituição estabeleça um ideal de saúde, o próprio legislador constitucional reconheceu a necessidade de estabelecer prioridades para a sua efetivação.
Nesse sentido, os efeitos relativos às normas sobre saúde devem iniciar a partir dessas prioridades, sendo ampliados gradualmente até abarcar o conjunto das políticas públicas de saúde. Segundo a autora mencionada, o constituinte delineou quatro áreas prioritárias que merecem destaque: (i) o fornecimento de serviços de saneamento (artigo 23, IX, 198, II e 200, IV); (ii) o atendimento à saúde materno-infantil (artigo 227, I); (iii) as ações de medicina preventiva (artigo 198, II); e (iv) as ações de prevenção epidemiológica (artigo 200, II) (BRASIL, 1988).
O objetivo dessas medidas prioritárias é garantir as condições básicas de saúde, permitindo que todos os cidadãos tenham acesso a cuidados médicos preventivos, o que, a longo prazo, pode evitar custos maiores com tratamentos curativos. Contudo, na prática, nem todos têm acesso a essas prestações essenciais de saúde ou, mesmo quando têm, o atendimento não é suficiente para garantir condições mínimas compatíveis com a dignidade humana.
Esses direitos são tão fundamentais para a dignidade da pessoa humana que devem ser tratados como regra, determinando as prioridades do orçamento público. A não implementação desses direitos essenciais confere ao cidadão o direito de exigir judicialmente a prestação de serviços adequados.
Destaca-se que a possibilidade de fiscalização e reivindicação desses direitos, no que se refere aos aspectos materiais da dignidade humana e ao mínimo existencial, não se limita ao âmbito individual, mas também pode ser abordada de forma coletiva. É importante ressaltar que, em um Estado Social de Direito, a exigência vai além do mínimo existencial. Os direitos fundamentais não se resumem a isso; o objetivo da ordem constitucional deve ser sempre buscar uma verdadeira e justa justiça social.
No entanto, a garantia do mínimo existencial enfrenta desafios significativos no Brasil, especialmente no que diz respeito à execução efetiva das políticas públicas que asseguram esses direitos. A escassez de recursos financeiros, a desigualdade regional e a sobrecarga dos sistemas públicos, como saúde e educação, dificultam a universalização de serviços essenciais, comprometendo a dignidade de uma parcela significativa da população. Embora a Constituição tenha delineado as bases para a implementação de tais direitos, a realidade prática muitas vezes revela a distância entre a teoria e a execução, o que reforça a necessidade de um acompanhamento constante e de uma fiscalização eficiente para garantir que os direitos fundamentais sejam realmente assegurados a todos, especialmente às camadas mais vulneráveis.
Ademais, a efetividade do mínimo existencial depende também de uma visão mais abrangente sobre os direitos sociais, que não se limitam ao atendimento imediato das necessidades fisiológicas, mas que devem integrar políticas de inclusão social e participação cidadã. O conceito de dignidade humana, assim como propõe Barcellos, está intimamente ligado à capacidade do indivíduo de exercer plenamente sua liberdade, tanto no âmbito político quanto no social. A garantia de condições mínimas de sobrevivência deve, portanto, ser complementada por políticas que favoreçam o acesso à educação de qualidade, ao trabalho digno e à participação ativa na vida pública, de modo que os cidadãos possam contribuir para o fortalecimento da democracia e do próprio sistema de direitos.
Nesse sentido, a busca pela realização do mínimo existencial e a efetivação dos direitos fundamentais não podem ser vistas de maneira fragmentada, mas sim como parte de um processo contínuo de promoção da justiça social. A implementação de políticas públicas que atendam a essas necessidades básicas deve ser acompanhada de um esforço para reduzir as desigualdades sociais e promover a inclusão de grupos marginalizados. Apenas com a construção de uma sociedade mais igualitária e participativa é que se poderá garantir a plena dignidade de todos os cidadãos, fazendo com que o mínimo existencial se converta em um real instrumento de transformação social e de fortalecimento da cidadania.
3.Análise da Jurisprudência do STF Sobre a Saúde
À medida que o direito à saúde é reconhecido como um direito social fundamental na Constituição Federal, ele adquire uma natureza imperativa, demandando que o Poder Executivo atue para assegurar sua efetivação. Contudo, quando o Estado falha no cumprimento desse dever, o Judiciário é acionado para garantir o atendimento e o fornecimento dos serviços de saúde requeridos pela população (CARLOS NETO, 2017). O crescente número de ações judiciais relacionadas ao direito à saúde, especialmente no que tange à solicitação de tratamentos e medicamentos, aliado à divergência de posicionamentos nos tribunais, tem colocado em evidência a importância do Supremo Tribunal Federal (STF) na fixação de diretrizes para a atuação judicial em tais demandas (ANDRADE, 2012).
A definição de parâmetros por parte do STF não só visa agilizar a tramitação dos processos, permitindo que os pacientes obtenham os tratamentos de forma mais rápida e eficaz, mas também contribui para a otimização dos recursos públicos, evitando o gasto excessivo com ações judiciais, ao mesmo tempo em que assegura o acesso à saúde de maneira mais organizada e eficiente. Nos últimos anos, a jurisprudência do STF sobre o direito à saúde tem se consolidado por meio de decisões sobre o fornecimento de medicamentos, a criação de leitos hospitalares, a contratação de profissionais de saúde, o custeio de tratamentos fora do domicílio e até no exterior, entre outros pontos (OLIVEIRA; CAPELLARI, 2021). O papel do STF tem sido crucial, pois suas decisões estabelecem parâmetros claros que guiam as ações do Judiciário, ajudando a resolver as pendências de forma uniforme e previsível.
Exemplificando, três decisões paradigmáticas do STF têm sido fundamentais na definição desses parâmetros: o RE 855.178/SE (tema 7938), o RE 657.718/MG (tema 5007) e o RE 566.471/RN (tema 06). Essas decisões, que fixam teses com repercussão geral, são fundamentais para garantir a uniformidade na interpretação do direito à saúde e fornecer maior previsibilidade para os envolvidos nas disputas judiciais, assegurando que os tribunais inferiores sigam os precedentes estabelecidos pelo Supremo.
O RE 855.178/SE trata da responsabilidade solidária dos entes federados no cumprimento do dever de prestação de serviços de saúde, estabelecendo que, em virtude da competência comum, a responsabilidade é compartilhada entre União, Estados e Municípios. O julgamento determinou que cabe ao magistrado direcionar o cumprimento da obrigação de acordo com as regras de repartição de competências dentro do SUS, podendo o juiz determinar que qualquer um dos entes federativos assuma a responsabilidade, conforme a situação específica do caso (BRASIL, 2019a).
No RE 657.718/MG, por sua vez, o STF abordou a obrigação do Estado em fornecer medicamentos sem registro na ANVISA, que ainda não foram incorporados ao SUS. A Corte fixou que, como regra, a ausência de registro na ANVISA impede o fornecimento judicial de medicamentos, salvo em situações excepcionais, como a demora na análise do pedido de registro ou a inexistência de alternativa terapêutica no país. Assim, a decisão do STF reforçou a necessidade de que o medicamento solicitado tenha respaldo científico e que haja evidências claras de sua eficácia e segurança para justificar a concessão judicial (BRASIL, 2015).
Por fim, o RE 566.471/RN abordou o fornecimento de medicamentos de alto custo a pacientes com doenças graves que não possuem condições financeiras para adquiri-los. O STF decidiu que, em casos excepcionais, o Estado pode ser obrigado a fornecer medicamentos de alto custo não incorporados ao SUS, desde que sejam cumpridos requisitos como a imprescindibilidade do medicamento, demonstrada por laudos médicos, e a incapacidade financeira do paciente e de sua família para custear o tratamento (BRASIL, 2020). A decisão também estabeleceu critérios adicionais, como a inexistência de alternativas terapêuticas no SUS, a comprovação da eficácia do medicamento e a necessidade de a demanda ser proposta contra a União, uma vez que a responsabilidade final recai sobre o governo federal.
Essas decisões do STF têm impacto direto na forma como os tribunais brasileiros lidam com as demandas relacionadas à saúde, proporcionando uma maior previsibilidade tanto para os cidadãos quanto para o próprio sistema judiciário. Ao estabelecer critérios claros para a análise das solicitações judiciais e garantir que os direitos à saúde sejam efetivamente protegidos, o Supremo contribui para a criação de um ambiente jurídico mais seguro e justo, equilibrando o direito à saúde com a sustentabilidade financeira do sistema público de saúde. Assim, a jurisprudência firmada pelo STF não apenas reforça a proteção do direito fundamental à saúde, mas também proporciona maior estabilidade e uniformidade na aplicação da lei.
Além disso, a atuação do STF tem se mostrado essencial para a construção de um entendimento jurídico mais coeso sobre a compatibilidade entre os direitos fundamentais e as limitações orçamentárias do Estado. A decisão do Supremo sobre a responsabilidade dos entes federados, por exemplo, busca assegurar que, embora a responsabilidade pelo fornecimento dos serviços de saúde seja compartilhada, o cumprimento desse dever deve ser efetivo, com a divisão de responsabilidades respeitando a realidade de cada esfera do governo. A jurisprudência do STF, ao tomar essas questões centrais, estabelece um equilíbrio entre a garantia dos direitos dos cidadãos e as limitações práticas enfrentadas pelo sistema público, criando parâmetros que direcionam as decisões judiciais em direção a soluções mais justas e eficientes.
Outra dimensão importante da atuação do STF é a sua capacidade de moderar o impacto das decisões judiciais sobre o orçamento público. Embora as determinações sobre o fornecimento de medicamentos e tratamentos sejam essenciais para garantir o direito à saúde, a quantidade de recursos financeiros necessários pode ser exorbitante, o que coloca em risco a sustentabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS). Nesse sentido, a Corte tem buscado estabelecer critérios rigorosos para a concessão de tratamentos e medicamentos, assegurando que a judicialização não leve a um comprometimento do orçamento público de forma desproporcional. As decisões sobre a obrigatoriedade de fornecimento de medicamentos de alto custo, por exemplo, exigem comprovação de que o tratamento é absolutamente necessário e que não há alternativas viáveis dentro do SUS, o que ajuda a racionalizar os custos do sistema de saúde.
Ainda que a jurisprudência do STF seja um passo fundamental para o alinhamento do direito à saúde com as necessidades e limitações do sistema público, é crucial reconhecer que o sucesso na efetivação desse direito depende de um esforço conjunto entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. O STF, ao criar diretrizes claras, não apenas orienta os tribunais, mas também impulsiona um debate mais amplo sobre como o Estado pode cumprir sua obrigação constitucional de garantir o acesso à saúde a todos, sem que o sistema colapse financeiramente. A responsabilidade, portanto, não recai unicamente sobre o Judiciário, mas exige um comprometimento efetivo de todos os entes federativos em fortalecer o SUS e garantir que a saúde seja tratada como um direito universal e inalienável, conforme a Constituição de 1988.
Conclusão
A judicialização da saúde no Brasil, além de ser um fenômeno crescente, reflete as dificuldades que o Estado enfrenta na garantia de direitos fundamentais, especialmente o direito à saúde, que está intimamente relacionado ao mínimo existencial. A Constituição Federal estabelece que a dignidade da pessoa humana deve ser o princípio norteador da atuação estatal, mas a efetivação desse direito depende de políticas públicas que atendam às necessidades básicas da população. Contudo, em um cenário de escassez de recursos e de falhas no financiamento da saúde, a sociedade se vê forçada a buscar, por meio do Judiciário, a garantia de tratamentos e medicamentos essenciais, o que resulta em um volume crescente de litígios.
Neste contexto, o papel do Supremo Tribunal Federal (STF) é central, não apenas para uniformizar a interpretação da Constituição, mas também para garantir que o direito à saúde seja respeitado dentro de limites financeiros sustentáveis, sem comprometer a dignidade dos cidadãos. As decisões recentes do STF, como as referentes aos recursos extraordinários RE 855.178/SE, RE 657.718/MG e RE 566.471/RN, estabeleceram parâmetros fundamentais que guiam a atuação dos tribunais inferiores, garantindo previsibilidade e clareza nas decisões.
Contudo, ainda que esses avanços sejam significativos, é crucial que o Estado brasileiro continue a aprimorar suas políticas públicas, de forma a atender de maneira mais eficiente e integral as necessidades de saúde da população. O mínimo existencial não pode ser visto como um limite, mas como um ponto de partida para o aprimoramento contínuo dos direitos sociais e para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Nesse sentido, a judicialização da saúde deve ser encarada não como um reflexo de falhas no sistema, mas como um indicativo da urgência de uma atuação mais eficaz do Estado, capaz de garantir os direitos fundamentais sem a necessidade de intervenção judicial constante.
Portanto, o desafio que se coloca ao Estado e à sociedade brasileira é o de alcançar um equilíbrio entre a proteção dos direitos fundamentais, como o direito à saúde, e a sustentabilidade financeira do sistema público de saúde, sem que isso comprometa a dignidade humana. Para isso, é necessário que haja um contínuo esforço na implementação de políticas públicas eficazes, que atendam às necessidades da população de forma ampla e inclusiva, e que garantam, de fato, o mínimo existencial para todos. Assim, o direito à saúde não deve ser visto como uma mera obrigação estatal, mas como uma condição essencial para a realização da dignidade humana e o pleno exercício da cidadania.
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Advogada Pública com atuação em Direito Administrativo, Cível e Trabalhista, e na área da saúde. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. Pós-graduada, com especialização em Direito Público (Direito Constitucional) e Privado (Direito Civil). MBA em Licitações e Contratos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MELO, Juliana Melissa Lucas Vilela e. Reflexões sobre a Judicialização da Saúde no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 dez 2024, 04:27. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /67224/reflexes-sobre-a-judicializao-da-sade-no-brasil. Acesso em: 27 dez 2024.
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